Em nome da ajuda humanitária, vários programas europeus mantêm maisde 6.000 soldados naquela região, que é rica em petróleo e vive clima de guerra civil.
Por Daniela Baudouin
Desde 1983, o conflito entre os rebeldes do sul do Sudão com as forças regulares do país matou aproximadamente 1 milhão e meio de pessoas; isso até 2005, data da assinatura de um precário acordo de paz. A partir de 2003 entra em cena uma nova guerrilha na parte ocidental do território, Darfur, onde também o controle dos benefícios econômicos advindos do petróleo está na base das reivindicações autonomistas. Esta última etapa provocou mais de 2 milhões de refugiados e 300.000 mortes, causados pela fome, doenças e pelos constantes ataques de milícias como os janjaweed, grupo supostamente apoiado pelo governo central do Sudão.
O Ocidente alega que há um genocídio sendo perpetrado por árabes brancos e muçulmanos alinhados ao poder em Cartum contra comunidades negras, cristãs e animistas em Darfur.
Mas outros interesses, que não propriamente humanitários, podem estar em jogo por trás dessas manifestações de repúdio e indignação e das resoluções que vem sendo tomadas.
O maior país da África é rico em petróleo, tem um governo de predomínio muçulmano e encontra-se num cenário de rivalidades entre potências e compromissos neocoloniais de França, Reino Unido e EUA.O que diferencia a política deste governo da de seus vizinhos, que também utilizam a violência contra civis para deter forças desestabilizadoras, é que este tenta manter-se numa posição mais independente nas negociações pela exploração de seus recursos naturais e ambiciona ser uma potência petroleira; aspiração que hoje só é possível pela diversificação dos investimentos no país – e em particular pela incursão da China.
A crescente influência do gigante asiático é provavelmente a principal razão para que a União Européia e os EUA trabalhem juntos na África.
Se por um lado o imperialismo francês perdeu quase todas as batalhas contra os EUA e viu-se obrigado a capitular, por outro a Total Fina Elf (grupo petrolífero francês) é praticamente o único concorrente dos chineses no Sudão. As companhias norte-americanas não podem participar dos novos contratos petroleiros devido ao embargo imposto em 1996 ao país.
Assim, Paris mantém a ilusão de participar nas grandes disputas mundiais no único continente onde ainda tem certa influência.
O Ocidente empreende então uma ação composta na região, que não exclui rivalidades, como o caso da França e EUA, destinada a restringir o poder da China, favorecendo a secessão das distintas províncias, a destruição do Estado e a instalação de um caos onde o poder seria recolhido por bandos armados que se beneficiariam das exportações, como acontece com o ópio no Afeganistão.
O conflito se expande aos países vizinhos do Sudão, 200.000 pessoas se refugiam no Chade e as fronteiras porosas permitem incursões armadas de um lado ao outro. O presidente desse país, Idriss Débry, no poder desde o golpe militar de 1990, patrocina os rebeldes de Darfur, principalmente o JEM, e se enfrenta no seu território a um grupo apoiado por Cartum.
A França (ex-potência colonial do Chade) que dá apoio logístico ao exército do ditador chadiano como parte de um acordo de cooperação militar com o país (acordos que remontam a 1976), é acusada pelo Sudão de enviar armas aos rebeldes de Darfur, através desse país fronteiriço.
O regime do Chade também recebe financiamentos da União Européia. Um dos empréstimos, obtido junto ao BEI (Banco Europeu de Investimentos) que seria utilizado para financiar projetos de infra-estrutura e de proteção ao meio ambiente, foi destinado pelo presidente ao orçamento militar.
Há diversas forças de paz da UE com grande proporção de soldados franceses atuando ali. O corpo expedicionário europeu, Eufor, instaurado em 2008 com 3.700 soldados (dos quais 1.650 franceses), foi enviado ao Chade para proteger os refugiados vindos do Sudão e responde tanto a considerações humanitárias como à preocupação dos ocidentais de criar uma fortaleza estratégica no centro da África.
As tropas não são consideradas isentas no conflito com o Sudão já que a França já tinha um contingente de 2000 homens e de aparelhos de caça e helicópteros no quadro de um outro dispositivo militar, a força Epervier.
Outro programa criado pela França que opera na África há aproximadamente dez anos é o Recamp (reforço das capacidades africanas de manutenção da paz), dirigido com o propósito de associar terceiros (África, Europa, ONU) às suas incursões militares e de dividir custos e responsabilidades conservando o controle das operações.
O governo francês não conseguiu ainda com que seu projeto de corredor humanitário, que partiria do Chade e adentraria o território sudanês em direção a Darfur, triunfe. Uma vez que seria necessária uma força armada para proteger as agências humanitárias, tal ajuda seria tão somente uma desculpa enganosa para uma verdadeira invasão militar.
Mas, na verdade, desde que Colin Powell, em 2004, lançou a campanha política contra o Sudão acusando-o de genocídio e incluindo-o na lista dos “países perigosos”, o projeto de intervenção militar-humanitária estava instaurado de modo inquestionável e oficial.
O novo humanitarismo seletivo (“humanismo armado“ nas palavras de Noam Chomsky) das potências mundiais, que fustigam o Sudão, mas recompensam regimes autoritários como o do chadiano Idriss Déby, se mostra pouco consistente perante o peso da China, que proporciona investimentos abundantes sem uma contrapartida política.
O denominado “direito de ingerência“, que já gozou de prestígio entre políticos e intelectuais, é atualmente muito criticado por diversos governos, e as ONGs que operam em regiões de conflito estão sendo consideradas como a vanguarda de uma nova era de recolonização.
Por isso não surpreende que perante a decisão inédita do Tribunal Penal Internacional de emitir um mandado de captura contra o presidente do Sudão, Omar al-Bashir, por crimes de guerra e crimes humanitários, o chefe de estado sudanês tenha decidido dar ordem de expulsão a diversas agências de ajuda humanitária.
Daniela Baudouin é editora da Casa das Áfricas
Fonte: Caros Amigos
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